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Carta p'rà América 

 

Maria:

Queira Deus que ao leres esta cartinha os teus se encontrem bem, pois nós por cá vamos da forma do costume.

Teu avô tem andado meio enfezado. As pernas já não o ajudam e o senhor doutor das Lajes receitou-lhe umas canadianas para ele se firmar melhor e sair de casa para não esmorecer. Na nossa freguesia é o que mais se vê.

Mesmo gente nova, com cinquenta anos, anda com aquelas cangalhas que substituem as bengalas. Até a nossa professora, reformada há dois anos, já anda desconjuntada dos ossos que é uma lástima, coitada!

No dia da festa é que se viu como vai o pessoal aqui. A maior parte anda derreada por isto ou por aquilo. Todos se queixam de doença e só se fala em médicos e hospitais, louvado seja Deus! Como se isto estivesse a caminhar para o fim... Ao menos houve um batizado na missa da festa, o que já não se via há tempos. Foi do José Armando, aquele rapaz que casou com a filha do Antonico do Cabeço, lembras-te? Ela parece que é doutora dos animais, pudera! O pai é lavrador abastado, tem vacas e gado de carne, e ela, desde pequena, gostava de ir ao mato a cavalo. O marido é pintor e mesmo com a crise lá se vai safando com uns biscates.

Olha: isto por aqui vai de mal a pior.

Deu na televisão, não sei se passou aí na América, que os impostos vão aumentar outra vez. Teu pai diz que vai ser uma lástima porque como as reformas já são pequenas, não tem como amanhar a vida.

Teu irmão está desempregado da construção. A companhia dele não tem trabalho há dias e ele diz que na Terceira há milhares de homens assim.

Aqui no nosso Pico, o pessoal ainda vai tendo que fazer, mas a gente sente que melhor não vai vir.

Antigamente, quando embarcaste para aí, as coisas estavam ruins e os rapazes fugiam com medo da guerra em África. Com o 25 de Abril, a guerra acabou e a vida melhorou muito daí para cá. Mas eu sempre temi que isto não ia acabar bem. Pois se davam dinheiro a toda a gente, a quem precisava e a quem não deviam, como é que isto ia dar certo? Dizem que foi por causa da democracia e das liberdades. Eu por mim penso o contrário, mas nem digo ao teu pai porque ele está sempre com o Salazar na boca, diz que se Salazar voltasse endireitava tudo. Como? Se foi no tempo dele que saíram deste Pico famílias inteiras para a América e Canadá, pois passava-se fome e nem havia dinheiro para os pais mandarem os filhos para a escola? Eu só tirei exame da quarta classe, sei ler e escrever, e podia ter ido mais longe pois a professora dizia que eu ainda havia de chegar a doutora, mas a tua avó - Deus lhe dê o céu!- Viúva, girava de manhã à noite atrás de uma vaquinha, e de uns bocadinhos de terra onde plantava os nossos comeres. Passou-se muito, mas tudo mudou com o 25 de Abril.

Agora vem estes senhores de fora mandar no nosso Portugal. Dizem que se deve cortar na saúde e já pagamos para uma consulta no hospital, que se gasta demais na educação e já cortaram nos professores, que o nosso governo e a nossa Câmara têm funcionários a mais e cortam nos salários e aumentam os impostos e que temos de poupar para pagar as dívidas aos estrangeiros. Se não fossem os trabalhos no Estado e na Câmara, ninguém tinha dinheiro aqui pois o leite já não dá como dava e o preço da carne está muito por baixo.

Ouvi na Televisão que o governo tinha de cortar nas gorduras  mas anunciaram que havia senhores a mandar em empresas do estado que ganhavam milhares de contos por mês, com carros de luxo à porta e despesas pagas. Então por que não cortam nesses e noutros ricos deste país e nos bancos que ainda há pouco tempo anunciavam de mês a mês que tinham lucros altíssimos?

Eu penso que o povo já não aguenta mais e que isto pode dar para o torto. A vizinha Felisbela anda muito nervosa, diz que o filho que vive em Lisboa sem trabalho há mais de seis meses, vai pedir todos os dias comida a um certo lugar onde se juntam centenas de pessoas, todas bem parecidas e arranjadas, mas sem dinheiro. Ao que havíamos de chegar! Já há quem fale num novo 25 de Abril. Estamos pior que antigamente!

Eu cá por mim tenho na ideia que o povo vai-se revoltar e esses senhores do Governo do continente ou entendem o que se diz ou vão à sua vida.

Oxalá Deus me ouça. Tenho fé que nossa Senhora da Piedade, tua madrinha de batismo, se vai compadecer de nós e vai iluminar as cabeças dos governantes para que não se deixem levar pela vontade dos senhores de fora.

Sabes que tenho orgulho em ser portuguesa e que quando toca o hino nacional nos jogos da nossa selecção, ponho-me de pé e canto, como aprendi na escola.

Que Deus ajude a todos!

Adeus querida filha e não te arrelies com este cramar. Hão-de vir dias melhores!

Tua mãe, Maria da Soledade.

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